Sunday, June 03, 2007

Preto e pobre


O país onde eu nasci me discrimina.
Sou preto. Pobre. Nasci favelado, marginal, uma ameaça.
Vem uma ong, me tira da cola, do banco de praça, da fome, da falta de instrução. Isso é bom. Muito bom. Mas mesmo assim não sou ninguém. Comer a esmola de uma ong não me faz cidadão. Jogar fora o tubo de cola, o baseado, não me faz gente. Saber ler e escrever não me garante emprego. Porque nenhuma dessas coisas me torna branco, nem me enche de dinheiro ou faz a favela desaparecer das minhas origens.
Conheci o esporte numa noite de chuva e frio. Estava roubando um pacote de biscoitos, tipo bolinho de goma, numa padaria. O segurança viu, me seguiu por quilômetros, acionou a polícia. O povo todo queria me ver tropeçar e cair, para ser capturado. Acho que queriam descontar em mim a raiva que têm de suas próprias vidas mesquinhas, encarceradas pelo medo dos verdadeiros bandidos.
Eu corri. Corri como nunca havia corrido antes, e isso me daria um pódio em qualquer prova de velocidade, porque aquele pacotinho que eu levava escondido dentro da camisa tinha cem gramas de esperança de não dormir mais uma noite com fome.
Eu corria com fome. O que me mantinha a força das pernas para continuar fugindo? Acho que era o alimento desespero. E eu corria. Apenas corria. Um Forrest Gump suburbano e tupiniquim, mestiço, feio, de cabelo ruim e sem os profundos olhos azuis do original do cinema, que talvez tivessem sido suficientes para que ficassem abertas algumas das muitas portas que me foram batidas na cara toda a vida.
Ser preto pesa!
Sem olhar para trás, não me dei conta em que momento desistiram de mim. Eu já corria sem razão, acho que queria fugir de quem eu era. Sair do corpo. Minha alma queria ter o poder de ir mais longe do que minhas pernas me podiam levar.
Já não era a fome ou o medo que me fazia correr. Era a vontade de bater de frente com um muro ou com um caminhão e passar através dele. Era a vontade de sentir o vento no rosto, a chuva que caía, o chão sob os meus pés, porque já não sentia mais nada disso. Era agora um misto de ninguém e coisa alguma com movimentos automáticos de fuga, querendo ser mais veloz do que meu próprio pensamento.
Também não sei em qual momento estacionei e acordei daquele torpor. Que eu era ainda aquele mesmo preto e pobre de antes, e agora fugitivo. Por causa de um mísero pacote de biscoitos eu era um fugitivo.
Lembrei-me então da razão da minha fuga. Procurei o precioso embrulho dentro da camisa encharcada, mas doeu engolir. Comi cada pequeno biscoito daqueles como se representassem minhas muitas dores, as pessoas que me feriram, que me rejeitaram; a escola que não me deu conhecimento do que era realmente importante e necessário, e que só tentou me fazer decorar um monte de regras de gramática e uma matemática que jamais somaria a meu favor. Engoli, naqueles bolinhos que se dissolviam na língua, os nãos que recebi, os olhares de nojo que as pessoas me dirigiam na rua, quando na companhia de um tubo de cola eu delirava e esmolava. Mastiguei minha solidão, minha orfandade, minha vida inteira à margem da margem da margem...
Dizem que os criminosos sempre voltam ao local do crime. Isso é a mais pura verdade. No dia seguinte lá estava eu, espreitando a mesma padaria. Não para roubar de novo. Eu não era tão ingênuo de pensar que não me reconheceriam. Nem sei bem por que, mas fiquei ali, observando o movimento como quem confere que o mal praticado não foi tão grande a ponto de quebrar alguma rotina ou levar o outro à falência. Acho que era um consolo de não ter feito algo assim tão grave.
Fiquei lembrando o gosto da goma se derretendo na saliva, chegando ao estômago oco, garantindo que estaria vivo por mais algumas horas, até o próximo furto ou a próxima esmola...
Estava tão absorto em meus pensamentos, olhar fixo nas pessoas que entravam e saíam, que não vi que alguém se aproximava de mim. Alguém que, por certo, também lembrou que o criminoso geralmente volta ao local de seu erro.
– Você corre muito! – Disse ela.
Tive ímpetos de sair em disparada, mas havia um ímã no seu olhar, uma doçura tão grande na sua voz, que não consegui me mover. Vi-me, pela primeira vez na vida, num instante de vácuo de todos os medos que antes respirei.
– Eu te vi correndo ontem. Devia fazer disso uma profissão. Ganhar alguma coisa, sabe? Eu posso ajudar, se você quiser.
Titubeei. Achei que fosse uma armadilha para me jogarem outra vez numa daquelas instituições para menores delinqüentes.
Mas a suavidade daqueles olhos e o tom da sua voz me deram uma sensação de paz tamanha, que era como se, em meio a um afogamento, alguém me trouxesse à tona pra respirar, enfim.
Acompanhei aquela mulher, como se estivesse sob hipnose. Sem uma palavra, eu a segui, e ela me mostrou uma face humana que eu julgava não existir. Deu-me de comer, uma refeição quente, nutritiva. Abrigou-me sob seu teto, com lençóis limpos e uma cama macia. Eu nunca tinha dormido tão confortavelmente antes!
Na manhã seguinte, quando acordei, havia comida numa mesa, à minha espera.
Alimentado e limpo, ela me levou para conhecer um lugar especial, onde eu passaria, daquele dia em diante, a maior parte do meu tempo. Era uma pista de atletismo.
Cheio de uma vontade nova de vida, me entreguei àquela chance de ser gente. Agarrei a mão que se estendia para mim e me salvei do naufrágio pessoal em que me achava.
Dias e noites, sob sol e chuva, me dediquei. Suei, senti o corpo doer. Senti medo de não ser para aquela fada-madrinha o que ela esperava que eu fosse. Mas senti, no cansaço dos músculos doloridos, que minhas fugas tinham acabado. Eu podia ser alguém, mesmo sendo preto, mesmo sendo pobre e tendo nascido favelado, em meio às inumeráveis balas perdidas. Porque um anjo, um dia, resolveu me resgatar do inferno, fazendo uma sentida prece na qual pedia a misericórdia de uma nova chance para mim. E o deus-sociedade aceitou seu pedido, concedeu-me uma nova vida, com oportunidades que não desperdicei. Era uma estreita fresta por onde a luz passava e eu me esgueirei por ela, me espremi, conseguindo atravessar a grossa muralha que me separava daquilo que chamavam de dignidade humana.
Um dia, centenas de olhos me olhavam, enquanto eu esperava o espocar de uma pistola que me autorizaria a arrancada em busca da minha primeira vitória. Então, naquele momento, lembrei do pacotinho de bolo de goma dentro da minha camisa encharcada de chuva, naquela noite fria...
Um disparo, lá ia eu, passos tão largos e ensaiados, quase não tocava o chão! Vencia, metro a metro, o meu maior inimigo: o medo. Não o medo da polícia ou do segurança da padaria me perseguindo pelas ruas da cidade, nem da fome que tinha ficado no passado e que era capaz de me matar. Nem mesmo era o natural medo do amanhã que eu vencia ali, naqueles passos arduamente treinados. Eu vencia o medo de mim mesmo, do eu que deixei para trás um dia, pelo que estivera me tornando a cada noite fria sem ter o que comer, me entregando ao crime como única fonte de alimento.
Aquelas centenas de olhares me seguiam, agora não mais como outrora, desejando que eu tropeçasse, mas querendo me ver chegar antes dos demais competidores numa linha branca atravessada no final da pista.
E o grito, o abraço, os repórteres, flashes de câmeras fotográficas, tumulto à minha volta... A princípio não entendi muito bem a dimensão do meu feito heróico. Eu havia quebrado um recorde importante, era agora o melhor dentre todos os melhores, o mais veloz dentre todos os que existiam no mundo!
A minha fada-madrinha agora podia se orgulhar de mim.
Mas, nos jornais do dia seguinte, onde deveria haver uma notícia que dissesse "Ele trouxe o ouro da sua vitória para depositar aos pés do anjo que lhe salvou da indiferença humana", estava em letras garrafais: "Ele trouxe o ouro... para o Brasil".
Pois é... A pátria onde eu, preto, pobre e favelado nasci, que me discriminou, me humilhou, me pisou, me empurrou com seu olhar indiferente e enojado para as drogas e a marginalidade, agora abria para mim os braços de "mãe gentil", cheia de sorrisos. E me chamava de "filho amado", se orgulhava de mim.
Eu olho agora o espelho e não mais reconheço nos olhos refletidos qualquer semelhança com a pessoa – ou coisa – que eu era no passado.
Esse irônico revés me faz querer devolver a esses braços estendidos da pátria-mãe agora tão gentil o mesmo olhar enojado que tantas vezes vi em minha direção, quando estendia minhas magras e sujas mãos, mendigando pelas ruas. Fez-me sentir espoliado quando tomou para si o ouro que eu queria depositar tão somente aos pés do meu anjo-de-guarda, única representação do amor que conheci.
Agora, pátria-mãe, já não sou mais seu filho. Quando você finalmente me reconhece, eu venho lhe fazer lembrar aquela madrugada fria em que você me pariu num banco de praça, sob a chuva, e me abandonou com uma mamadeira de cola nas mãos e um manto de papelão a me cobrir.
Esse filho que agora está adornado com o ouro das muitas vitórias conquistadas, você não pôde abortar, mas jogou na lata de lixo, numa orfandade patrial, com fome de esperança. Não foi mãe, quando eu precisei de mãe. Não foi nada para mim, nunca. Não tem significado para minha vida, senão de coisas dolorosas e marcantes. Não quero lhe dar minhas vitórias, não me orgulho das suas cores, nem do seu nome, que infelizmente tenho que carregar por onde ando.
Mas aí vem um repórter que não sabe nada de mim, da minha vida, do meu passado, da fome, do medo, do abandono, e poeticamente afirma: "Ele trouxe o ouro para o Brasil".
Soa tão lindo, importante, grandioso. Mas... Ah, como me sinto espoliado...
EmmyLibra
Jun 3rd, 2007 - 10pm