[...] Como então dizer quem falo / ora a Vossas Senhorias? / Vejamos: é o Severino / da Maria do Zacarias, / lá da serra da
Costela, / limites da Paraíba.
[...] Mas isso ainda diz pouco: / se ao menos mais cinco
havia.
[...] E se somos Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, / mesma morte severina: / que é a morte de que se morre / de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte / de fome um pouco por dia.
[...]
— Seu José, mestre carpina, / que diferença faria / se em vez de continuar / tomasse a melhor saída: / a de saltar, numa noite, / fora da ponte e da vida?
(Trechos extraídos do livro “Morte e Vida Severina”, de João
Cabral de Melo Neto)**
QUANDO SEVERINO, RETIRANTE, RESPONDE AO
CARPINA
SOBRE SUA DECISÃO DE VIVER OU DE MORRER*
Seu José, mestre carpina, se me permite dizer
Comecei minha jornada querendo esclarecer
E relatar quem eu sou, tentando me descrever.
Mas eram tantos pormenores que me faziam quem
era
Que desisti de um nome pra me mostrar em
jornada
Pelos meus atos, meus sonhos, meus desenganos
de vida
Minhas paradas, uns medos e solidões
ressentidas.
Diante de mortes e vidas, severinas como a
minha
Eu segui pelo caminho, ora pensando aqui
dentro
Ora olhando para fora, ora me contradizendo
Convidando a quem quisesse saber de mim um
bocado
Do que nem mesmo eu sabia, e aprendi nesses
passos.
Como Vossa Senhoria me diz, com propriedade,
Ao longo do meu caminho a vida se mostrou
teimosa
Não tenho ainda certezas se vale a pena
viver.
Mas vivo o momento de agora, esse da nossa
prosa
E sei que essa mesma força que me sustenta
hoje
E me trouxe do sertão pro litoral, pra cidade
É a que move essa vida, não me deixa
enlouquecer.
É essa vida torta, essa vida severina
Dolorosa, tão difícil e esturricada de seca
Que me mostrou minha sina de ser também um
teimoso
De não querer dessa ponte e dessa existência
hoje
Pular para fora, me render, me sentir assim
medroso.
Prefiro a dor, cada dia, a fome e o estar só
Do que descobrir que não sou quem tentei
dizer que era
Do que perder de mim mesmo o nome e
capacidade
De entender de mim mesmo, de ter uma
identidade.
Mesmo sendo um caminhante, mesmo me
confundindo
Com tantos outros que passam por mim ao longo
da vida
Tantos outros severinos, em dores, em sina, e
em lida,
Essa ponte e essa vida não mais me verão
pular
Mais vale seguir sofrendo, mas sonhando e
existindo
Do que pensar numa morte, severina como
d’outros
Que, como eu, num momento de fome e de
desespero
Desistiram de viver, de continuar seu
caminho.
Mais vale ser um teimoso, agarrado ao fio da
vida
Do que ser mais um na cova, rasa, sob medida
Mais vale ser severino de sina, de dor e de
lida
Do que abrir mão dos meus sonhos, que é de
não precisar
Tantos nomes e lugares, coisas a explicar
Pra dizer quem eu sou – e a dúvida se afasta!
Sou apenas Severino: este que aqui me
apresento.
E Vossa Mercê que ouve, desde o começo,
atento
A mim me dirá que a vós, saber só isso já
basta.
EmmyLibra
May 28, 2013 - ± 3:00 p.m.
* Post criado a partir de atividade proposta pela professora Andréa Moreira (amo!!), na disciplina Psicologia Social (amo também!!), na qual deveríamos criar um novo final para o poema, a partir dos conceitos de Identidade vistos em sala de aula. Tomei, então, a liberdade de tentar escrever continuando o estilo. Nem de longe consegui dar sequência ao brilhante trabalho do João Cabral, claro! Mas fica o texto como recordação da aula e como homenagem ao escritor, que admiro profundamente.
O texto original fala muito de coisas que conheço bem: também migrei muitas vezes, embora em condições bem diferentes e mais fáceis, mas com a mesma velha conotação de abandonar referências para buscar-se em outras novas e desconhecidas... E hoje, se tenho um pouso, se tenho um lugar onde quero estar, foi por ter tido a oportunidade de experimentar diferentes espaços e conhecer pessoas que agora fazem parte da minha vida de modo positivo, para que meu hoje-aqui valha a pena. Andréa Moreira é uma delas. =)
** A quem interessar a leitura do texto original, do João Cabral de Melo Neto, está disponível na íntegra em http://www.culturabrasil.pro.br/zip/mortevidaseverina.pdf
Eu recomendo! ;)
Eu recomendo! ;)
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