Tuesday, March 15, 2022

Sobre o Tempo II

"O tempo não pára." 
(Cazuza)

Quando voltamos para o apartamento esses dias, e me vi no mesmo espelho de antes, não reconheci a pessoa que havia nele.
Passei dois anos fora da rota, mas passaram-se 20 anos para mim, nesse intervalo.
Antes, o tempo caminhava macio, calçado em meias de lã, eu nem conseguia ouvir seus passos ou prestar atenção no seu abrir e fechar de portas.
Agora, ele pisa por cima de mim com botinas e esporas, e corre veloz, num cavalo enorme, pelas campinas ressecadas dos meus dias preocupados.
Tornou-se para mim, de eloquente professor, em implacável algoz!
E já não me ensina como outrora, mas apenas me castiga pelas lições que negligenciei aprender, enquanto ele caminhava silente entre os móveis da minha sala.
Eu sempre gostei do tempo.
Nunca me importei com as suas ferramentas abrindo sulcos no meu rosto ou na minha alma. Mesmo doendo de vez em quando, eu ainda aguardava pacientemente pelo dia em que sua escultura estivesse pronta.
Mas ela não fica pronta nunca!
Ele esculpe sem parar, e vai tirando lascas cada vez maiores, e elas doem mais e mais fundo, enrugando mais a minha esperança do que a superfície do meu corpo.
Mas eu não peço que ele pare o seu trabalho. Não! Eu jamais pediria!
Ao contrário, eu quero mesmo que acelere as coisas! 
Que ele termine logo o que começou naquele outubro distante em que, talvez por preguiça ou má vontade de começar uma nova escultura, tentou me arrastar por asfixia. Veio o doutor Genecy e não deixou, aplicando-me a primeira e caprichada surra de trinta e cinco palmadas estaladas no traseiro, recurso rudimentar, mas eficaz, àquela época.
Meu velho e ranzinza amigo tempo, meu mestre e artesão, meu algoz impiedoso... Um dia ele extinguirá minhas memórias e lembranças, deletará pessoas e lugares que conheci, até que, por fim, me dará a calmaria do esquecimento de mim mesma, apagando todas as luzes e fechando todas as portas, para que nada atrapalhe o meu sono.
Confio nele. Às vezes pula algumas etapas, às vezes impacienta-se e acelera as coisas, mas nunca, jamais deixa de cumprir o seu fim.
Ao termo da vida, quem sabe, ao me olhar uma vez derradeira no espelho do meu apartamento, eu consiga reconhecer algum traço da pessoa que um dia eu gostei de ser.
Até lá, deixem-me quieta.
Shhh!! Não quero atrapalhar o artífice, enquanto ele trabalha em sua escultura!

EmmyLibra
Mar 15, 2022 - 10:30 a.m.