Friday, March 06, 2020

Enchente

Um abraço, um sussurro:
"Tudo vai ficar bem.
Calma, anjinho
Eu estou
Aqui"

Escuridão e medo
Frestas vazando má sorte
Em jatos frios
De água e morte

O peso do mundo inteiro
Sobre as cabeças
Naquele teto frágil

"Tudo vai ficar bem
Calma, anjinho!
Eu estou
Aqui"

Um resto de ar
Quem suporta assistir
Seu anjinho partindo
De dentro do seu abraço?

Quanto tempo se passou?
Ninguém sabe ou viu
Ninguém ouviu
Gritos e apelos
Submersos

E no canto da rua a boca aberta
De um lobo feroz e sedento 
Das águas da chuva 
Que lambia a cidade.

Mas era nadica de nada!
Só um papelzinho de bala
Um inocente resto
Da maçã mordida
Só um canudinho de suco
Uma latinha
Um copinho vazio!
Só... Só... Só...

Ninguém tem culpa?

Todos temos culpa!
Todos matamos ou morremos
Dia após dia,
A cada chuva que cai.

Submersos, muitos
Por não darmos de beber
Àquele lobo feroz
Que mora ao lado do meio-fio!

É só um papelzinho de bala!
E se não morre um peixe
Anônimo, invisível,
No fundo do oceano,
Morrem marias abraçadas
Num carro submerso
Sob tantos outros carros
Levados na enxurrada.

Se não morre a tartaruga,
O pelicano, a baleia,
(O que já é 
Desavergonhadamente mau!)
Morrem Marias abraçadas
No leito de um rio fundo
Onde há meia hora era rua.

Um abraço derradeiro,
Uma mentira - esperança?
Um sussurro de mãe
Ao pé do ouvido:
"Tudo vai ficar bem.
Calma, anjinho!
Eu estou
Aqui"

E daí a pouco 
Já não estavam mais...

EmmyLibra
July 20, 2019 - 1:54 p.m.

(Sobre morte de mãe e filha na enchente em 2018, em BH/MG)

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